Hoje foi dia de plantão na coleta. Sempre vou dormir tarde e
estou chegando constantemente atrasada por alimentar o hábito de acordar e
voltar a dormir. O plantão é daquele jeito, meio cansativo, mas algo nele me
atiça de uma forma que eu não entendia até hoje.
Nós nos escondemos no laboratório. Cada dia mais isso me
incomoda. E cada dia mais eu procuro me mostrar um pouco mais. Eu gosto de
saber, de fazer, mas quero que me vejam, não quero ser o nome após o “Liberação:”.
Oi, tô aqui. Contato.
No plantão nós andamos por aí. Vemos uma galera estressada, mas
vemos também os pacientes. A gente toca neles. Sente a pele estranha. Diz que
vai colher sangue e comenta que o clima tá esfriando pra disfarçar o medo de
errar. E recebe um comentário sobre o programa de televisão que tá passando.
Ouve que a mão está gelada, que somos um amor. Ouve eles escolhendo a veia pra
você e dizendo que “ali não adianta, ninguém nunca conseguiu”. Vê os familiares
sentados meio desconfortáveis e um grupo de quatro pacientes dividindo o mesmo
quarto falando e rindo alto como um grupo de amigos que me lembrou eu, a Gabi e
a Thamyres aqui em casa. O contato da coleta me atiça.
A gente vê as coletadoras apressadas e ótimas fazendo o seu
trabalho. Vemos todos lá trabalhando muito bem. Andando pra lá e pra cá
acostumados com aquela rotina. Aquela é a casa deles. Aquele é o local deles.
Todos são de lá e sabem que vão voltar pra lá daqui a um ou dois dias. A
sensação de pertencimento... Já eu, vôo. Estou vendo sempre tudo de cima. Eu
estou aqui, mas sei que logo não estarei mais. Faço uma rotina temporária que
não será minha logo, logo...
Hoje a tarde nós não saímos pra coletar. Fizemos um trabalho
de estatística. E explicamos estatística pras meninas. E rimos com elas. De
muitas coisas. Era um clima amistoso e, enquanto isso, o sol se pôs em meio a
muito vento. Nós todas paramos. Olhando da janela de trás da maternidade. Não
dava pra ver muita coisa, mas dava pra ver. Deu pra tirar fotos. Deu pra testar
a câmera do celular novo que uma das meninas comprou. Deu pra escutar e
exclamar! o vento batendo forte na janela.
Eu amo esse vento desde criança. Nós chamamos de Rapa-canela,
um evento nomeado. É o vento em que os olhos falam pro pai: “tá chegando o frio!”.
Lá em Blumenau tem pouco dessa época, mas aqui é constante. E foi aí que meus
olhos arderam um pouco num misto de empolgação e...! Esse é meu último 19 de
maio aqui. Meu último 19 de maio coletando, olhando pela janela da coleta o
pôr-do-sol. Eu sou temporária. Tô de passagem por aqui e nem sei onde vou estar
daqui a um ano.
Eu tô construindo e sentindo coisas muito grandes e novas
nesse tempo de permanência. Eu me conheço e descubro cada dia mais. E eu não
quero que tudo isso seja temporário. Na verdade, nada será realmente. Tudo vai
me acompanhar, porque são eles e elas, mas sou eu também. A vivência aqui de
casa, as pessoas brilhantes... “O que
são essas pessoas brilhantes?”. Entramos nesse assunto em análise por eu ter
trazido que tenho pontos de luz espalhados. “São as pessoas que brilham, ué, as
pessoas especiais. São as minhas pessoas.” As pessoas que eu quero levar pra
minha vida.
Eu me pergunto se essas pessoas estarão comigo no próximo 19
de maio. Combinando fondue pro dia seguinte, jogando Imagem e ação depois de
uma sopa, sentindo o vento frio no rosto, coletando sangue?... Essas coisas nos
fazem olhar o presente com outros olhos. E pra ilustrar isso, aí vai o mesmo
pôr-do-sol da última foto tirada aqui do nosso apto, pela Gabi, no mesmo
momento.
Que esses momentos sejam presentes para sempre...!